quinta-feira, 27 de novembro de 2014

CAPÍTULO 3 - FELIZ ANIVERSÁRIO

ALICE NO FUNDO DO POÇO

EPISÓDIO DE HOJE:

FELIZ ANIVERSÁRIO



"É pique, é pique. É pique, é pique, é pique! É hora, é hora. É hora, é hora, é hora! Rá-tim-bum!": Uma das possíveis origens para este bordão é o ambiente acadêmico da Faculdade de Direito do Largo São Francisco, cujos estudantes eram convidados para festas de aniversário e utilizavam os seus bordões de costume para animá-las. O bordão é uma colagem de diversos outros bordões usados pelos estudantes, como pic-pic referindo-se a um dos estudantes que mantinha consigo uma tesoura para aparar a barba e o bigode e rá-tim-bum que teria se originado do nome Timbum de um rajá indiano que teria visitado a faculdade.

         — Francamente, preciso ser mais rigoroso na contratação dos funcionários... Alice! — Salgado não era muito mais velho que Alice. A barba por fazer, os cabelos loiros com alguns fios brancos lhe dava certo charme. O fato é que só estava naquela posição por ser filho do patrão, o Salgado Pai. Sabe aquele sujeito que todas flertam a primeira vista, porém depois de conhecer querem distância? Então, era ele!
           — Oi? — Respondeu a Bela Adormecida. Esfregou os olhos, deixando borrar sua maquiagem. Arrumou rapidamente os papéis de sua mesa, e apagou o “sdfalçdsfklfkf~ldsafffffffff...” que havia escrito involuntariamente ao dormir com a cara no teclado do computador.
             — Explique!
            — Salgado! Nossa... Acabei adormecendo...
            — Com a cara no teclado?
            — Anomalia de família. Só consigo dormir assim. Meus pais só dormiam de ponta cabeça, uma loucura! Vovó só pega no sono se alguém lamber seu pé em movimentos lentos e circulares
            — Minha nossa! Esqueci o que vim fazer aqui...
            — Salgado, Salgadinho, precisa se tratar. Vive esquecendo as coisas, amigo. Outro dia veio trabalhar de gravata e sem camisa... Parecia um gogo boy com baixo orçamento.
            — Hoje é terça ou quarta-feira?
            — Sexta-feira...
             — Treze!
            — Sim?
            — Feliz aniversário!
            Que lindo, não lembra o nome completo, mas se recordou do meu aniversário, pensou Alice.
            No rádio, uma mulher de voz irritantemente aguda, anunciava o horóscopo. Tinha certeza que seria um dia péssimo. Seus aniversários não eram felizes, o mais alegre foi no hospital, braços e pernas quebrados, tinham lhe empurrado do brinquedo mais alto do playground, mas pelo menos tinha comida e pessoas lhe dando atenção.
            As últimas palavras da radialista com voz de pata fizeram os pelos da nuca de Alice arrepiar. Ela terminava assim: “Tudo pode melhorar em sua vida, se você completar a sua missão. Ainda hoje você receberá um sinal que será...”. Jamais saberia o sinal, pois Salgado desligou o rádio da tomada, e a olhava como um leão faminto frente a uma lebre suculenta.
            — Tenho um presente. Vai escrever sua primeira matéria de capa! Uma entrevista com algum artista decadente!
            Não brinca! Quem?
            Na mesma hora sentiu um foco de luz iluminar seu corpo e o som de palmas, muitas palmas. Já conseguia se imaginar subindo por uma escada dourada, usando um vestido maravilhoso que deixaria todas as mulheres e gays se cortando de inveja. Receberia um prêmio e por culpa disso apresentaria um programa de televisão. Mães batizariam suas filhas com seu nome, teria sua própria linha de brinquedos e...
            — Alice? — berrou o chefe, e estragou toda a fantasia.
            O entusiasmo de nossa querida Alice Maravilha é porque realizaria o maior sonho de sua vida. Foi escalada para entrevistar um dos ex-integrantes da Flop4, isto é, se continuasse viva até lá. Dez anos se passaram desde que a banda acabou e agora ela poderia rever os olhos azuis do rapaz com quem se imaginava casada, morando numa casa de frente para o mar, com três filhos loirinhos, falando inglês e criando um casal de poodle. Ele era lindo, ele era forte, ele era o sonho de consumo de todas as garotinhas abobalhadas do mundo. Ele era “O Gato”! 

CONTINUA

quinta-feira, 20 de novembro de 2014

CAPÍTULO 2 - A MALDIÇÃO DOS GATINHOS ARTISTAS

ALICE NO FUNDO DO POÇO

EPISÓDIO DE HOJE:

A MALDIÇÃO DOS GATINHOS ARTISTAS



Eluromania: Amor excessivo aos gatos.Pessoas que amam mais aos gatos do que os humanos; não medem esforços para salvar os gatos e alimentá-los.
 Algumas pessoas chegam a alugar imóveis só para ocupação dos gatos.

            — Eu não entendo... — Foi o mais lúcido que Alice conseguiu formular. Como assim a culpa era dela? Não, tudo bem, Alice não era nenhum exemplo de sanidade, possuía um imã para confusão que era surreal, mas desta vez parecia inocente.
            — Estamos nos separando porque você é uma gorda! — acusou o líder da banda.
            — Oi? — Exatamente, OI? Depois de toda aquela loucura o cara diz que a banda está se separando pelo fato de uma fã estar acima do peso. Não vejo sentido nisso.
            Num segundo todos os adolescentes malvados ali presente começaram a gritar em coro: “Gorda, gordinha, gordona”. Alice não sabia onde enfiar a cara. Desejou estar ao lado da magricela para poder se esconder no meio da mata que era o tal cabelo ruivo.
            — Eu não sou gorda! Foi um feitiço... Um feitiço que a velha do gato me jogou... — gritou Alice, e oficialmente a história perdeu todo o sentido. As pessoas olhavam espantadas, a banda parecia ter sido congelada. Até mesmo um passarinho que pretendia fazer suas necessidades na cabeça de Alice, mudou de ideia.
            Todos sentados? Peguem a pipoca, aí vem mais uma história:
            Morava num imundo quartinho de uma velha pensão no subúrbio. Já tinha se convencido que morar sozinha não era nada mágico como iludiam os filmes americanos. Para início de conversa a dona da pensão era uma verdadeira bruxa e chamava-se Dona Gatarina. Isso mesmo, Dona era o primeiro nome, Gatarina o segundo. Obviamente Dona Gatarina tinha paixão por gatos e fedia a fezes felinas. Além do vício por bichanos, a proprietária da pensão tinha outra mania: Televisão! Por isso todos os gatos tinham nomes de celebridades, era Senhorita Hebe pra cá, Dona Glória Maria pra lá, tinha o Senhor Marlon Brando, que ela amava.
            Certa noite Alice voltava mais uma vez de seus encontros às escuras. Tinha bebido uma ou dezessete. Abriu com muita dificuldade a porta e andou fazendo o chão ranger. Por que ela fez isso? Num piscar de olhos começaram a surgir gatos e mais gatos. Vinha da janela, da porta, ela pode jurar que viu um se materializando do nada. Alice detestava gatos. Houve uma época em que achava todos fofos, dava até leitinho, mas a amizade com os felpudos não durou muito tempo, quando uma gata de nome Winona roubou a comida de seu prato. Os felinos caminhavam - e miavam - até Alice. Ela sabia que se Dona Gatarina acordasse, com certeza estaria frita, ou na rua. Os gatos continuavam com o escândalo, pareciam cantar uma mistura de Macarena e Saudosa Maloca. A garota pensou em escapar pela esquerda, mas não tinha nada na esquerda, enfim, ela estava bêbada. Seguiu em frente. Desviou se de um gato gorducho de nome Jô Soares, ignorou o charme que o Senhor Fabio Junior lhe mandava. Estava quase na porta do seu quarto, quando aconteceu um imprevisto. Ela se distraiu com a esquelética e fumante Senhorita Winehouse, e acabou tropeçando na abundante Gata Melancia, que miou em velocidade cinco. Alice tinha perdido o equilíbrio, tentou segurar em algo, mas não tinha nada ali. Ela ia cair. Ela caiu. Um miado agourento tomou conta do recinto. Alice ouviu uma porta se abrir, ao mesmo tempo em que um trovão explodia lá fora. Dona Gatarina tinha acordado. A moça estava estatelada no chão, tinha caído em alguma coisa macia e temia muito saber o que era. Quando Dona Gatarina surgiu, usando sua camisola velha com estampa do Piu Piu, teve um ataque de fúria. Alice encontrava-se em cima de seu gato preferido, um perneta de nome Roberto Carlos.
            Foi naquela noite que recebeu a maldição.
            A partir daquela noite, toda vez que Alice ouvisse uma música de Roberto Carlos, engordaria um quilo, até explodir. Desde então os especiais de fim de ano se tornaram um tormento para a garota...
            A história era bizarra. Todos a olhavam boquiabertos. A Flop4 já não estava mais no palco. Ela ouvia alguém gritar o seu nome insistentemente. Num piscar de olhos os adolescentes desapareceram. A voz continuava a gritar, era uma voz conhecida e possuída por ódio, uma voz masculina. Onde ela estava? Então aquilo era um pesadelo?
            Aquilo era um pesadelo! Alice acordou, suada, os óculos tortos. Seu chefe, o déspota, Salgado Filho, fuzilava com os olhos.

            Desejou dormir novamente. Dormir para sempre.

CONTINUA...

quinta-feira, 13 de novembro de 2014

CAPÍTULO 1 - A CULPA É DA GORDA!

ALICE NO FUNDO DO POÇO

EPISÓDIO DE HOJE: 

A CULPA É DA GORDA!


BALZAQUIANA: Mulher na faixa dos 30 anos. Há quem empregue a palavra balzaquiana de forma pejorativa e até negativa. Mas, na realidade, é com 30 anos que as mulheres chegam ao seu ápice: mais maduras, realistas e vividas, elas esbanjam sensualidade e realização.

          Para início de conversa seu quarto era lilás, mas não pensem vocês que estou falando de um lilás discreto, estou falando do lilás berrante, enjoativo e com cheiro de chiclete. Parte dessa tinta lilás era coberta por pôsteres de inúmeros astros adolescentes e fotografias... Muitas fotografias. Ah, claro, também havia uma estante com os mais diferentes bichinhos de pelúcia, todos delicadamente sentadinhos, separados por tamanho, cor e idade. Todos fofos, fofíssimos.
            Era um típico quarto infantil, qual o problema nisso? Problema nenhum... Se ela FOSSE uma criança!
            Alice tinha trinta e dois anos!
            Alice Maravilha, trinta e dois anos, jornalista, solteira e sem filhos. Altura mediana, acima do peso, voz fina. Ocupa o tempo indo sozinha ao cinema, preferencialmente para ver algum “filme de chorar”. Apesar de ter pouquíssimos amigos, todos virtuais, dizia odiar livro de autoajuda e ria de todas as mulheres frustradas que reclamavam da vida. Alice era uma mulher frustrada, mas nunca reclamava de nada, ou pelo menos nunca exteriorizava seus problemas... Mesmo porque, faria isso pra quem?
            Quando Alice acordou aquela manhã, estava mais feliz que vencedora de Reality Show. Com sua camisola de gosto duvidoso, pulou da cama e correu pela casa cantarolando desafinadamente o sucesso de sua boyband preferida: a Flop4.
            Boyband é como chamamos um grupo de cantores pop. Geralmente todos são lindos e, na maioria das vezes, não cantam tão bem, mas quem se importa?
            Conheceu essa banda quando voltava de um encontro desastroso, na verdade nem podemos caracterizar como encontro quando a pessoa espera, por mais de duas horas, alguém que conheceu pela internet. Alice já estava se afogando nas próprias lágrimas quando começou a ouvir a música que a transformaria. Era a Flop4! Ela limpou o rosto, estufou o peito e tomou a decisão mais importante da vida. Ia aprender a se socializar fora da internet e criar relacionamentos sadios e felizes? Claro que não! Ia se tornar a presidenta de fã-clube. Gastou metade do salário em camisas, pirulitos e, é claro, no ingresso do primeiro grande show ao vivo.  
            Quatro dias passando fome, sede, frio, acampada na porta de um estádio de futebol, entretanto se realizaria. Ficaria frente a frente à Flop4!
            Óbvio que as coisas não aconteceram magicamente como imaginara.
            Assim que os portões se abriram, uma grande onda, praticamente um tsunami de adolescentes histéricas, surgiu derrubando quem estivesse na frente, ou seja, Alice!
            Foi uma verdadeira aventura conseguir um bom lugar, se é que pode se chamar de bom lugar ficar entalada entre um anão oriental e uma magricela de cabelo ruivo e volumoso. Quando a banda surgiu no palco, ela esqueceu tudo e sentiu vontade de gritar, mas não podia, o anão pisou em seu pé e o cabelo da ruiva entrou em sua boca, para piorar tudo, uma desesperadora vontade de fazer xixi, apoderou-se da mulher.
           Queria pular, dançar, e, acima de tudo, ir ao banheiro. Jurou que nunca mais beberia nada antes de sair de casa, juramento esse que sabia que seria em vão, pois água era um importante ingrediente da nova dieta revolucionária que estava seguindo. A dieta do sol: você só pode comer até o sol se pôr, depois disso, só podia ingerir água. O resultado era que agora estava ali se contorcendo, aflita e com ódio de revistas femininas para mulheres gordas.
            Seu conforto era que ninguém a notaria naquele lugar, pois além das luzes malucas e da fumaça colorida, as pessoas preferiam dar atenção a tal da magricela de cabelos rebeldes e ruivos que, naquele instante, arrancara toda a roupa, deixando muito animado o anão de descendência oriental. Um cheiro de desodorante duvidoso tomou o nariz de Alice, estava impossível respirar, nunca esteve numa situação tão desesperadora desde o dia em que pegou seus avós, na cozinha, pelados e cobertos de farinha de rosca, quando tinha oito anos.
            Depois de uma abertura clichê com efeitos pirotécnicos e fumaça, a banda surgiu no palco. Eles voavam com a ajuda de cabos de aço e a multidão gritava ainda mais.
            A banda era formada por quatro integrantes, dois rapazes e duas moças. Cada um vestia um personagem, um estereótipo cuidadosamente criado para gerar identificação junto aos fãs: O Louco, o Gato, a Malvada e a Fofa.
            Enquanto era jogada de um lado para o outro, para cima e para baixo, Alice tentava cantar a música da banda. Descabelada, ainda sorria. A primeira música havia chegado ao fim e ela ainda estava viva. Sorte pra quem?
            Foi neste exato momento que aconteceu o que ninguém esperava: A Flop4 interrompeu o show e anunciou o fim da banda!
            Alice sentiu as pernas tremerem, o coração parecia sair pela boca. Num passe de mágica as pessoas começaram a se afastar, o tsunami adolescente havia se transformado no mar vermelho e começava a se abrir e Alice, no meio, era como se fosse Moisés!
Os integrantes da banda encaravam a garota. A garota encarava os integrantes da banda. As outras pessoas encaravam a garota e os integrantes da banda. Alice nada entendia.
Os quatro membros da Flop4 apontavam para ela. Sentia quatro dedos em sua testa.
            Não! Não podem se separar! Minha vida se resume a vocês! Eu sou feia, gorda, chata, ninguém gosta de mim, mas eu tenho vocês... — berrou Alice, sua voz ecoou em meio à multidão, que começou a vaiar, mas ela não deu de ombros e seguiu decidida em direção ao palco.
            — Será que ela está drogada? — perguntou uma moça.
            — Você disse armada? — perguntou outra.
            — Só se for com uma barra gigante de chocolate.
            Sem saber de onde havia tirado forças, Alice já tinha escalado o palco e se perguntava onde estariam os seguranças. Estava furiosa.
         — Passei mais de uma noite, acampada, só pra ver o show de vocês! Dividi uma barraca laranja com um anão japonês tarado e com uma ruiva excêntrica chamada Cleide. Se vocês acabarem, eu morro! Vocês são a Flop4! Não podem se separar... Vão se tornar cantores solos e fracassados que lançam um disco e depois caem no esquecimento!

           De repente uma melodia lúdica se iniciou. Dançarinos brotaram no palco. Alice nada entendia, mas também não conseguia falar e, mesmo se conseguisse as palavras já não habitavam sua cabeça. Foi rodeada pelos cantores, logo não eram mais um quarteto, se multiplicavam e também mudavam de cor. Unidos eles cantavam, dançavam, sorriam e voltavam a cantar num looping eterno a música de uma só frase: “A culpa é da gorda”.
CONTINUA...