ALICE NO FUNDO DO POÇO
EPISÓDIO DE HOJE:
A CULPA É DA GORDA!
BALZAQUIANA: Mulher na faixa dos 30 anos. Há quem empregue a palavra balzaquiana de forma pejorativa e até negativa. Mas, na realidade, é com 30 anos que as mulheres chegam ao seu ápice: mais maduras, realistas e vividas, elas esbanjam sensualidade e realização.
Para início de
conversa seu quarto era lilás, mas não pensem vocês que estou falando de um
lilás discreto, estou falando do lilás berrante, enjoativo e com cheiro de
chiclete. Parte dessa tinta lilás era coberta por pôsteres de inúmeros astros
adolescentes e fotografias... Muitas fotografias. Ah, claro, também havia uma
estante com os mais diferentes bichinhos de pelúcia, todos delicadamente sentadinhos,
separados por tamanho, cor e idade. Todos fofos, fofíssimos.
Era um típico quarto infantil, qual
o problema nisso? Problema nenhum... Se ela FOSSE uma criança!
Alice tinha trinta e dois anos!
Alice Maravilha, trinta e dois anos,
jornalista, solteira e sem filhos. Altura mediana, acima do peso, voz fina.
Ocupa o tempo indo sozinha ao cinema, preferencialmente para ver algum “filme
de chorar”. Apesar de ter pouquíssimos amigos, todos virtuais, dizia odiar
livro de autoajuda e ria de todas as mulheres frustradas que reclamavam da
vida. Alice era uma mulher frustrada, mas nunca reclamava de nada, ou pelo
menos nunca exteriorizava seus problemas... Mesmo porque, faria isso pra quem?
Quando Alice acordou aquela manhã,
estava mais feliz que vencedora de Reality Show. Com sua camisola de gosto
duvidoso, pulou da cama e correu pela casa cantarolando desafinadamente o
sucesso de sua boyband preferida: a Flop4.
Boyband é como chamamos um grupo de
cantores pop. Geralmente todos são lindos e, na maioria das vezes, não cantam
tão bem, mas quem se importa?
Conheceu essa banda quando voltava de
um encontro desastroso, na verdade nem podemos caracterizar como encontro
quando a pessoa espera, por mais de duas horas, alguém que conheceu pela
internet. Alice já estava se afogando nas próprias lágrimas quando começou a
ouvir a música que a transformaria. Era a Flop4! Ela limpou o rosto, estufou o
peito e tomou a decisão mais importante da vida. Ia aprender a se socializar
fora da internet e criar relacionamentos sadios e felizes? Claro que não! Ia se
tornar a presidenta de fã-clube. Gastou metade do salário em camisas, pirulitos
e, é claro, no ingresso do primeiro grande show ao vivo.
Quatro dias passando fome, sede, frio,
acampada na porta de um estádio de futebol, entretanto se realizaria. Ficaria
frente a frente à Flop4!
Óbvio que as coisas não aconteceram
magicamente como imaginara.
Assim que os portões se abriram, uma
grande onda, praticamente um tsunami de adolescentes histéricas, surgiu
derrubando quem estivesse na frente, ou seja, Alice!
Foi uma verdadeira aventura
conseguir um bom lugar, se é que pode se chamar de bom lugar ficar entalada
entre um anão oriental e uma magricela de cabelo ruivo e volumoso. Quando a
banda surgiu no palco, ela esqueceu tudo e sentiu vontade de gritar, mas não
podia, o anão pisou em seu pé e o cabelo da ruiva entrou em sua boca, para
piorar tudo, uma desesperadora vontade de fazer xixi, apoderou-se da mulher.
Queria pular,
dançar, e, acima de tudo, ir ao banheiro. Jurou que nunca mais beberia nada antes
de sair de casa, juramento esse que sabia que seria em vão, pois água era um
importante ingrediente da nova dieta revolucionária que estava seguindo. A
dieta do sol: você só pode comer até o sol se pôr, depois disso, só podia
ingerir água. O resultado era que agora estava ali se contorcendo, aflita e com
ódio de revistas femininas para mulheres gordas.
Seu conforto era que ninguém a
notaria naquele lugar, pois além das luzes malucas e da fumaça colorida, as
pessoas preferiam dar atenção a tal da magricela de cabelos rebeldes e ruivos
que, naquele instante, arrancara toda a roupa, deixando muito animado o anão de
descendência oriental. Um cheiro de desodorante duvidoso tomou o nariz de
Alice, estava impossível respirar, nunca esteve numa situação tão desesperadora
desde o dia em que pegou seus avós, na cozinha, pelados e cobertos de farinha
de rosca, quando tinha oito anos.
Depois de uma abertura clichê com
efeitos pirotécnicos e fumaça, a banda surgiu no palco. Eles voavam com a ajuda
de cabos de aço e a multidão gritava ainda mais.
A banda era formada por quatro
integrantes, dois rapazes e duas moças. Cada um vestia um personagem, um
estereótipo cuidadosamente criado para gerar identificação junto aos fãs: O
Louco, o Gato, a Malvada e a Fofa.
Enquanto era jogada de um lado para
o outro, para cima e para baixo, Alice tentava cantar a música da banda.
Descabelada, ainda sorria. A primeira música havia chegado ao fim e ela ainda
estava viva. Sorte pra quem?
Foi neste exato momento que
aconteceu o que ninguém esperava: A Flop4 interrompeu o show e anunciou o fim
da banda!
Alice sentiu as pernas tremerem, o
coração parecia sair pela boca. Num passe de mágica as pessoas começaram a se
afastar, o tsunami adolescente havia se transformado no mar vermelho e começava
a se abrir e Alice, no meio, era como se fosse Moisés!
Os integrantes
da banda encaravam a garota. A garota encarava os integrantes da banda. As
outras pessoas encaravam a garota e os integrantes da banda. Alice nada
entendia.
Os quatro membros
da Flop4 apontavam para ela. Sentia quatro dedos em sua testa.
—
Não! Não podem se separar! Minha vida se resume a vocês! Eu sou feia, gorda,
chata, ninguém gosta de mim, mas eu tenho vocês... — berrou Alice, sua voz
ecoou em meio à multidão, que começou a vaiar, mas ela não deu de ombros e
seguiu decidida em direção ao palco.
— Será que ela está drogada? —
perguntou uma moça.
— Você disse armada? — perguntou
outra.
— Só se for com uma barra gigante de
chocolate.
Sem saber de onde havia tirado forças,
Alice já tinha escalado o palco e se perguntava onde estariam os seguranças.
Estava furiosa.
—
Passei mais de uma noite, acampada, só pra ver o show de vocês! Dividi uma
barraca laranja com um anão japonês tarado e com uma ruiva excêntrica chamada
Cleide. Se vocês acabarem, eu morro! Vocês são a Flop4! Não podem se separar...
Vão se tornar cantores solos e fracassados que lançam um disco e depois caem no
esquecimento!
De repente uma melodia lúdica se
iniciou. Dançarinos brotaram no palco. Alice nada entendia, mas também não
conseguia falar e, mesmo se conseguisse as palavras já não habitavam sua
cabeça. Foi rodeada pelos cantores, logo não eram mais um quarteto, se
multiplicavam e também mudavam de cor. Unidos eles cantavam, dançavam, sorriam
e voltavam a cantar num looping eterno a música de uma só frase: “A culpa é da
gorda”.
CONTINUA...
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